domingo, 13 de abril de 2014

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: CAMINHOS E DESCAMINHOS Magda Soares



Um olhar histórico sobre a alfabetização escolar no Brasil revela uma trajetória de sucessivas mudanças conceituais e, conseqüentemente, metodológicas. Atualmente,parece que de novo estamos enfrentando um desses momentos de mudança – é o que prenuncia o questionamento a que vêm sendo submetidos os quadros conceituais e as práticas deles decorrentes que prevaleceram na área da alfabetização nas últimas três décadas: pesquisas que vêm identificando problemas nos processos e resultados da alfabetização de crianças no contexto escolar, insatisfações e inseguranças entre alfabetizadores, perplexidade do poder público e da população diante da persistência do fracasso da escola em alfabetizar, evidenciada por avaliações nacionais e estaduais, vêm provocando críticas e motivando propostas de reexame das teorias e práticas atuais de alfabetização. Um momento como este é, sem dúvida, desafiador, porque estimula a revisão dos caminhos já trilhados e a busca de novos caminhos, mas é também ameaçador, porque pode conduzir a uma rejeição simplista dos caminhos trilhados e a propostas de solução que representem desvios para indesejáveis descaminhos. Este texto pretende discutir esses caminhos e descaminhos, de que se falará mais explicitamente no tópico final; a este tópico final se chegará por dois outros que o fundamentam e justificam: um primeiro que busca esclarecer e relacionar os conceitos de alfabetização e letramento, e um segundo que pretende encontrar, nas relações entre esses dois processos, explicações para os caminhos e descaminhos que vimos percorrendo, nas últimas décadas, na área da alfabetização.
    
                              

Alfabetização, letramento: conceitos

Letramento é palavra e conceito recentes, introduzidos na linguagem da educação e das ciências lingüísticas há pouco mais de duas décadas; seu surgimento pode ser interpretado como decorrência da necessidade de configurar e nomear comportamentos e práticas sociais na área da leitura e da escrita que ultrapassem o domínio do sistema alfabético e ortográfico, nível de aprendizagem da língua escrita perseguido, tradicionalmente, pelo processo de alfabetização. Esses comportamentos e práticas sociais de leitura e de escrita foram adquirindo visibilidade e importância à medida que a vida social e as atividades profissionais foram-se tornando cada vez mais centradas na e dependentes da
língua escrita,revelando a insuficiência de apenas alfabetizar 
 – no sentido tradicional – a criança ou o adulto. Em um primeiro momento, essa visibilidade se traduziu ou numa adjetivação da palavra alfabetização funcional  tornou-se expressão bastante difundida – ou em tentativas de ampliação do significado de alfabetização,alfabetizar , por meio de afirmações como “alfabetização não é apenas aprender a ler e a escrever”, “alfabetizar é muito mais que apenas ensinar a codificar e decodificar”, e outras semelhantes. A insuficiência desses recursos para criar objetivos e procedimentos de ensino e de aprendizagem que efetivamente ampliassem o significado de alfabetização, alfabetizar,
alfabetizado  é que pode justificar o surgimento da palavra
letramento, conseqüência da necessidade de destacar e claramente configurar, nomeando-os, comportamentos e práticas de uso do sistema de escrita, em situações sociais em que a leitura e/ou a escrita estejam envolvidas.
  Entretanto, provavelmente devido ao fato de o conceito de
letramento ter sua origem numa ampliação do conceito de
alfabetização, esses dois processos têm sido freqüentemente confundidos e até mesmo fundidos. Pode-se admitir que, no plano conceitual, talvez a distinção entre alfabetização
letramento não fosse necessária, bastando que se ressignificasse o conceito de alfabetização (como sugeriu Emilia Ferreiro em recente entrevista concedida à revista
Nova Escola, n.162, maio 2003); no plano pedagógico, porém, a distinção torna-se conveniente,embora seja também imperativamente conveniente que, ainda que distintos, os dois processos sejam reconhecidos como indissociáveis e interdependentes.
   Assim, por um lado, é necessário reconhecer que
alfabetização – entendida como a aquisição do sistema convencional de escrita – distingue-se de letramento –entendido como o desenvolvimento de comportamentos e habilidades de uso competente da leitura e da escrita em práticas sociais: distinguem-se tanto em relação aos
objetos de conhecimento quanto em relação aos processos cognitivos e linguísticos de aprendizagem e, portanto, também de ensino desses diferentes objetos – isso explica por que é conveniente a distinção entre os dois processos.
   Por outro lado, é necessário também reconhecer que, embora distintos,alfabetização e letramento são interdependentes e indissociáveis: a alfabetização só tem sentido quando desenvolvida no contexto de práticas sociais de leitura e de escrita e por meio dessas práticas, ou seja: em um contexto de letramento e por meio de atividades de letramento; este, por sua vez, só pode desenvolver-se na dependência da por meio da aprendizagem do sistema de escrita.
   Distinção, mas indissociabilidade e interdependência – que conseqüências tem isso para a aprendizagem da língua escrita na escola? 

Aprendizagem da língua escrita: alfabetização e/ou letramento?

Uma análise das mudanças conceituais e metodológicas ocorridas ao longo da história do ensino da língua escrita no início da escolarização revela que, até os anos 80, o objetivo maior era a alfabetização (tal como acima definida), isto é,enfatizava-se fundamentalmente a aprendizagem do sistema convencional da escrita. Em torno desse objetivo principal, métodos de alfabetização alternaram-se em um movimento pendular: ora a opção pelo princípio da síntese, segundo o qua la alfabetização deve partir das unidades menores da língua – dos fonemas, das sílabas – em direção às unidades maiores – à palavra, à frase, ao texto (método fônico, método silábico); ora a opção pelo princípio da análise, segundo o qual a alfabetização deve, ao contrário, partir das unidades maiores e portadoras de sentido – a palavra, a frase, o texto, em direção às unidades menores (método da palavração, método da sentenciação, método global). Em ambas as opções,porém, a meta sempre foi a aprendizagem do sistema alfabético e ortográfico da escrita; embora se possa identificar, na segunda opção, uma preocupação também com o sentido veiculado pelo código, seja no nível do texto (método global), seja no nível da palavra ou da sentença (método da palavração, método da sentenciação),estes – textos, palavras, sentenças – são postos a serviço da aprendizagem do sistema de escrita: palavras são intencionalmente selecionadas para servir à sua decomposição em sílabas e fonemas, sentenças e textos são artificialmente construídos, com rígido controle léxico e morfossintático, para servir à sua decomposição em palavras, sílabas, fonemas.
   Assim, pode-se dizer que até os anos 80 a alfabetização escolar no Brasil caracterizou-se por uma alternância entre métodos sintéticos e métodos analíticos,sempre, porém, com o mesmo pressuposto – o de que a criança, para aprender o sistema de escrita, dependeria de estímulos externos cuidadosamente selecionado sou artificialmente construídos, e também sempre com o mesmo objetivo – o domínio desse sistema, considerado condição pré-requisito
para que a criança desenvolvesse habilidades de uso da leitura e da escrita, isto é: primeiro, aprender a ler e a escrever, verbos nesta etapa considerados intransitivos, para só depois de vencida essa etapa atribuir complementos a esses verbos: ler textos, livros,escrever estórias, cartas...
   Nos anos 80, a perspectiva psicogenética da aprendizagem da língua escrita,divulgada entre nós sobretudo pela obra e pela atuação formativa de Emilia Ferreiro, sob a denominação de “construtivismo”, trouxe uma significativa mudança de pressupostos e objetivos na área da alfabetização, porque alterou fundamentalmente a concepção do processo de aprendizagem e apagou a distinção entre aprendizagem do sistema de escrita e práticas efetivas de leitura e de escrita.Essa mudança paradigmática permitiu identificar e explicar o processo através do qual a criança constrói o conceito de língua escrita como um sistema de representação dos sons da fala por sinais gráficos, isto é, o processo através do qual a criança se torna alfabética, e, por outro lado, e como conseqüência, sugeriu as condições em que mais adequadamente esse processo se desenvolve, isto é,revelou o papel fundamental que tem, para o processo de conceitualização da língua escrita, uma interação intensa e diversificada da criança com práticas e materiais reais de leitura e de escrita.Entretanto, o foco no processo de conceitualização da língua escrita pela criança e a ênfase na 
importância de sua interação com práticas de leitura e de escrita como meio para provocar e motivar esse processo têm subestimado, na prática escolar da aprendizagem inicial da língua escrita, o ensino sistemático das relações entre a fala e a escrita, de que se ocupa a 
alfabetização, tal como anteriormente definida. Como conseqüência de o construtivismo ter evidencia do processos espontâneos de compreensão da escrita pela criança, ter condenado os métodos que enfatizavam o ensino direto e explícito do sistema de escrita e, sendo fundamentalmente uma teoria psicológica, e não pedagógica, não ter proposto uma metodologia de ensino, os professores foram levados a supor que, a despeito de sua natureza convencional e freqüentemente arbitrária, as relações entre a fala e a escrita seriam construídas pela criança de forma incidental e assistemática, como decorrência natural de sua interação com numerosas e variadas práticas de leitura e de escrita, ou seja, através de atividades de
letramento, prevalecendo, pois, esta sobre as atividades de
alfabetização. É sobretudo essa ausência de ensino direto,explícito e sistemático da transferência da cadeia sonora da fala para a forma gráfica da escrita que tem motivado as críticas que atualmente vêm sendo feitas ao construtivismo, e é ela que explica por que vêm surgindo, surpreendentemente,propostas de retorno a um
método fônico como solução para os problemas que vimos enfrentando na aprendizagem inicial da língua escrita pelas crianças.
  No entanto, não é retornando a um passado já superado e negando avanços teóricos incontestáveis que esses problemas serão esclarecidos e resolvidos. Por outro lado, ignorar ou recusar a crítica aos atuais pressupostos teóricos e a insuficiência das práticas que deles têm decorrido resultará certamente em mantê-los inalterados e persistentes. Ou seja: o momento é de procurar caminhos e recusar descaminhos.

Caminhos e descaminhos

A aprendizagem da língua escrita tem sido objeto de pesquisa e estudo de várias ciências nas últimas décadas, cada uma delas privilegiando uma das facetas dessa aprendizagem; para citar as mais salientes: a faceta fônica, que envolve o desenvolvimento da consciência fonológica, imprescindível para que a criança tome consciência da fala como um sistema de sons e compreenda o sistema de escrita como um sistema de representação desses sons, e a aprendizagem das relações  fonema-grafema e demais convenções de transferência da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita; a faceta da leitura fluente, que exige o reconhecimento holístico de palavras e sentenças; a faceta da leitura compreensiva, que supõe ampliação de vocabulário e desenvolvimento de habilidades como interpretação, avaliação, inferência, entre outras; a faceta da identificação e uso adequado das diferentes funções da escrita, dos diferentes portadores de texto, dos diferentes tipos e gêneros de texto... Fundamentam cada uma dessas facetas teorias de aprendizagem, princípios fonéticos e fonológicos, linguísticos, psicolinguísticos, sociolinguísticos, teorias da leitura, teorias da produção textual, teorias do texto e do discurso... Conseqüentemente, cada uma dessas facetas exige metodologia de ensino específica, de acordo com sua natureza, algumas dessas metodologias caracterizadas por ensino direto e explícito, como é o caso da faceta para a qual se volta a alfabetização, outras por ensino muitas vezes incidental e indireto, porque dependente das possibilidades e motivações das crianças, bem como das circunstâncias e contexto em que se realize a aprendizagem, como é caso das facetas que se caracterizam como de letramento.
  A tendência, porém, tem sido privilegiar, na aprendizagem inicial da língua escrita, apenas uma de suas várias facetas e, conseqüentemente, apenas uma metodologia: assim fazem os métodos hoje considerados como “tradicionais” que,como já foi dito, voltam-se predominantemente para a faceta fônica, isto é, para o ensino e a aprendizagem do sistema de escrita; por outro lado, assim também tem feito o chamado “construtivismo”, que se volta predominantemente para as faceta sreferentes ao letramento, privilegiando o envolvimento da criança com a escrita em suas diferentes funções, seus diferentes portadores, com os muitos tipos e gênerosde texto. No entanto, os conhecimentos que atualmente esclarecem tanto os
 processos de aprendizagem quanto os
objetos da aprendizagem da língua escrita, e as relações entre aqueles e estes, evidenciam que privilegiar uma ou algumas facetas, subestimando ou ignorando outras, é um equívoco, um descaminho no ensino e aprendizagem da língua escrita, mesmo em sua etapa inicial – talvez por isso temos sempre fracassado nesse ensino e aprendizagem; o caminho para esse ensino e aprendizagem é a articulação de conhecimento e metodologias fundamentados em diferentes ciências, e sua tradução em uma prática docente que integre as várias facetas, isto é, que
articule a aquisição do sistema de escrita, que é favorecida por ensino direto, explícito e ordenado, aqui compreendido como sendo o processo de alfabetização, com o desenvolvimento de habilidades e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas sociais de leitura e de escrita, aqui compreendido como sendo o processo de
letramento .A utilização, acima, dos verbos integrar, articular 
retoma a afirmação anteriormente feita de que os dois processos – alfabetização e letramento – são, no estado atual do conhecimento sobre a aprendizagem inicial da língua escrita,indissociáveis, simultâneos e interdependentes: a criança alfabetiza-se, isto é,constrói seu conhecimento do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita, em situações de
letramento, isto é,no contexto de
por meio de interação com material escrito real, e não artificialmente construído, e de sua participação em práticas sociais de leitura e de escrita; por outro lado, a criança desenvolve  habilidades e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas sociais que a envolvem
no contexto do,por meio do em dependência do processo de aquisição do sistema alfabético e ortográfico da escrita. Este alfabetizar letrando, ou letrar alfabetizando, pela integração e articulação das várias facetas do processo de aprendizagem inicial da língua escrita, é, sem dúvida, o caminho para a superação dos problemas que vimos enfrentando nesta etapa da escolarização; descaminhos serão tentativas de voltar a privilegiar esta ou aquela faceta, como se fez no passado, como se faz hoje, sempre resultando em fracasso, este reiterado fracasso da escola brasileira em dar às crianças acesso efetivo e competente ao mundo da escrita.
(Revista Pátio, n. 29, fevereiro de 2004)



quinta-feira, 27 de março de 2014

ORALIDADE, UM ESTADO DE ESCRITURA - Glória Radino


RESUMO. A proposta deste artigo é uma reflexão sobre o tratamento dado à oralidade na educação infantil. Tomou-se, como
referência, a forma como os contos de fadas são apresentados aos alunos, pêlos professores. Foi analisada a abordagem dada pelo Referencial Curricular para Educação Infantil (1998) à linguagem oral e escrita, bem como trechos de entrevistas realizadas com professores de educação infantil, em uma cidade do interior paulista, como parte de uma pesquisa que resultou na dissertação de Mestrado da autora. Como resultados, percebemos que a escola, em sua função alfabetizadora e por acreditar que as crianças provêm de um meio sócio-cultural desfavorecido, valoriza a linguagem escrita e despreza a oralidade, que perde sua função auxiliar na construção simbólica da criança, o que facilitaria o próprio processo de alfabetização.
Palavras-chaves: oralidade, contos de fadas, alfabetização.

ORALITY: A STATE OF WRITING
ABSTRACT. The aim of this paper is a reflection on the treatment given to orality in infant education. One takes as a
reference the way fairy tales are presented to the students by the teachers. The approach given by the Standard Curriculum for Infant Education (1998) was analyzed in relation to oral and written language. Parts of interviews concerning the acquisition of literacy, made with infant education teachers in a city of the state of São Paulo, Brazil, and which were part of the research that resulted in the author’s MA dissertation, were also analyzed. The results of this research show that the school, believing that the children come from an unfavorable social-cultural environment, gives more weight to the written language to the detriment of oral language when teaching how to read. Bybeing played down, orality loses its auxiliaryfunction in the child’s symbolic construction which could help in the acquisition of literacy.Key words: orality, fairy tales, alphabetisation. 1

INTRODUÇÃO
Nos vazios do silêncio escreve-se a história dos homens. Tecido de palavras sussurrantes,de gestos singulares que o contista organiza em narrativas únicas. No solo polvilhado de farinha de cevada torrada em torno do qual juntam-se os ouvintes, ressoam os cascos d um cavalo. O som eleva-se entre o sonho e nós, como uma poeira dourada. O herói passou, e deixou seu vestígio na areia de nossas memórias onde sobreviverá. (Bricout,Conto e Mito)
Este artigo é uma síntese dos capítulos iniciais de minha dissertação de Mestrado, intitulada Branca de Neve Educadora: o imaginário em jogo. Partindo do pressuposto, através de trabalhos publicados , que os contos de fadas representam importantes formas de expressão, procuro mostrar como eles podem auxiliar na formação e construção da subjetividade da criança pré-escolar. Como projeção de fantasias inconscientes, os contos de fadas, ao mesmo tempo que ajudam a elaborar conflitos inerentes ao processo de desenvolvimento e socialização, constroem um sistema metafórico e simbólico, podendo ser considerados um rico instrumento pedagógico. Dessa forma, esta pesquisa analisa como os contos de fadas são utilizados no dia-a-dia por professores de educação infantil. Constatou-se que são pouco utilizados e, quando o são, servem como subsídios para atividades pedagógicas e são transformados em pretextos para tarefas escolares, perdendo sua função lúdica e estética. A forma como os contos de fadas são utilizados no cotidiano escolar está relacionada à concepção de infância que permeia o discurso pedagógico. Inserida em uma instituição escolar, a infância deve encaixar-se em um modelo cientificamente determinado e sua fantasia e criatividade são normatizadas.
Durante a análise das entrevistas chamou-me a atenção a forma como os contos de fada são transmitidos para as crianças. Em sua função alfabetizadora, a escola valoriza a escrita de tal maneira que menospreza a função da oralidade na formação da subjetividade. Apesar das mudanças ocorridas nos contos de fadas e nas suas formas de transmissão, percebemos que no momento de sua enunciação, transformações ocorrem no conto, naquele que o ouve e em seu narrador. “Pois a um conto, para ser vivo e compreendido, não lhe basta ser transmitido pelo texto: necessita despregar-se mais amplamente por meio da voz e do gesto, a melodia do discurso ...” (Cuinenier citado por Jean, 1990a, p. 26).
Para Jean (1990 a), a construção do imaginário é a construção do sujeito, e o ato da palavra funciona
como um duplo espelho, reflexo do que somos e do que dizemos. “Toda relação com a criança é, de alguma maneira, relação de linguagem. A mãe, o professor e o adulto em geral se colocam ante a criança como seres de palavras...” (Jean, 1990a, p. 24). Metamorfoses se revelam não só nos personagens das histórias mas também naqueles que escutam e naqueles que narram um conto.
Gostaria de levantar algumas questões sobre a transmissão oral dos contos de fadas, em sua importante função de transmitir saberes e, ao mesmo tempo, de inserir o indivíduo em um mundo cultural e metafórico, auxiliando no seu processo de simbolização. Em seguida, apresentarei alguns dadossobre o tratamento dado no Referencial Curricular para Educação Infantil (1998) à oralidade e à escrita.
Finalizando, discutirei trechos das entrevistas realizadas com professores de educação infantil, relativos à forma como os contos de fadas são apresentados às crianças.

A TRANSMISSÃO ORAL E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Ao ingressar na escola, seja qual for sua idade, a criança traz consigo as marcas de seu meio cultural.Inserida em um meio familiar e comunitário, ela carrega consigo conjuntos de representações simbólicas que lhe foram transmitidas por seus pais, avós e amigos. A cultura é um fenômeno humano, organizada em códigos simbólicos de relações e valores tais como: tradições, religiões, leis, política, ética, artes, etc (Jean, 1990b). A criança em idade pré escolar adquire a maior parte de seus conhecimentos através da transmissão oral. Os adultos com quem convive são os que a introduzem no uso da palavra. “(...) A língua é o instrumento necessário e privilegiado de toda a relação educativa e, ..., é em grande parte pela língua que se revela a cultura inicial, para não dizer primitiva, de toda a criança” (Jean, 1990b, p. 40).3
Laznik (2000) mostra que a voz materna, em seus picos prosódicos, representa o primeiro objeto da pulsão oral. Como nenhum objeto da necessidade é capaz de satisfazer uma pulsão, o autor acrescenta o olhar e a voz como objetos que não são os da satisfação de uma necessidade qualquer. Laznik usa metáforas como “palavras alimentadoras” ou “capaz de comer as histórias que lhe contamos” . Fala do estudo de um psicolingüista que reconheceu uma apetência oral exacerbada em recém-nascidos para uma forma específica de palavra materna, que ele chamou de motherease (mamanhês). No trabalho com crianças de 1 a 3 dias, antes da primeira mamada, ele descobriu que o bebê, ao ouvir uma forma prosódica da mãe dirigida a ele, torna-se atento e suga intensamente uma chupeta não nutritiva.
Durante séculos, a aprendizagem foi realizada através da transmissão oral. Não existiam livros, escolas, nem a infância como a concebemos hoje.
Através dos mitos, dos contos, do teatro e de todas as formas possíveis de comunicação oral e corporal, transmitiam-se valores e regras sociais. Com a invenção da prensa tipográfica, em meados do século XV, criou-se um novo mundo simbólico e uma nova tradição: a leitura. As escolas proliferaram e os livros assumiram uma função primordial na educação e na instrução.
O grande problema é que, em sua função alfabetizadora, a escola passou a valorizar de tal forma o livro e a letra impressa, que acabou subestimando a linguagem oral, muitas vezes confundida com analfabetismo e cultura primitiva. A oralidade, a leitura e a escrita são atividades integradas e complementares, sendo que o primeiro contato da criança com o texto se dá através da narração oral, independentemente de estar ou não vinculada ao livro.
Mas, apesar de muitos contos terem chegado até nós pela escrita, sua sobrevivência na história deve-se à tradição oral. Através de uma série de rituais, os contos de fadas eram transmitidos e puderam, dessa
forma, perpetuar durante séculos. O narrador transformava sua função em um cerimonial em que não só o que era transmitido importava, mas também a ritualização de sua transmissão.
Um verdadeiro conto de fadas popular não se origina no momento em que o estudioso de folclore o colige, mas ao ser contado por uma avó para seus netos ou por um membro da tribo ioruba a outros membros da tribo ioruba, ou por um contador profissional de histórias para seu público num café árabe. Um verdadeiro conto de fadas, um conto de fadas dentro de sua verdadeira função, existe dentro de um círculo de ouvintes (Karel Capek citado por Warner, 1999, p. 42).

OS TORADJAS: UMA TRADIÇÃO VIVA

Em uma província de Sulawesi-Selatan ou Sélèbes-Sul, vive um grupo étnico com mais de quinhentos mil habitantes. São os Toradjas, cuja cultura caracteriza-se pela celebração de rituais e pela transmissão através da literatura oral.4 As histórias são narradas a pequenos grupos por contadores profissionais escolhidos entre os membros da comunidade, realizando, assim, a aprendizagem (Traça, 1998).
Os contos são transmitidos durante a estação da fome, em que a comida torna-se escassa e o povo vigia o crescimento do arroz. Na falta do alimento, os contos servem de alimento à alma. As histórias fazem com que se esqueçam da escassez, da fome, sendo alimentados pelos conhecimentos e fantasias que advêm das narrativas. Os contos têm por objetivo instruir e distrair. Da mesma maneira, em um ritual sagrado, exercem sua ação sobre a fertilidade do solo e o crescimento da vida. Se ditos no momento certo, o arroz cresce; caso contrário, crescem as ervas. Entre os Toradjas as crianças não adormecem sem o embalo das histórias e recusam-se a dormir enquanto houver um narrador acordado.
Como afirma Traça (1998), o que a Psicanálise descobriu sobre a função terapêutica e educativa dos
contos de fadas, as sociedades tradicionais já o sabem há séculos. Em sociedades como essas, os contos sempre ocuparam um lugar fundamental na vida da comunidade.
As histórias são narradas sempre como acontecimentos reais; se não aconteceu ao narrador, aconteceu a alguém conhecido que lhe transmitiu o fato. O conto assume um caráter sagrado e religioso que o narrador entrega à comunidade, em uma cerimônia sacramental, como um conselheiro (Benjamin, 1994). Os ouvintes asseguram a realização
da cerimônia pelo total respeito ao narrador, dando consentimento à perpetuação do ritual. Ninguém
duvida das histórias narradas e cada ouvinte encontra se dentro da narrativa (Docampo, 1999).

LINGUAGEM ORAL E ESCRITA NO REFERENCIAL CURRICULAR

Concebendo a alfabetização como um processo global, cultural e social, em que a oralidade, a leitura e a escrita são atividades integradas e complementares,gostaria de analisar a forma como o Referencial Curricular para Educação Infantil (1998) aborda a linguagem oral e escrita. O RCN assinala que a alfabetização não é um processo mecânico. Critica alguns métodos que priorizam a cópia e o desenvolvimento de atividades de coordenação motora, buscando o treinamento de habilidades sensório-motoras, de percepção e de memorização. Há um reconhecimento de que a criança deve participar ativamente na construção de seu conhecimento.
Aprender a ler e a escrever faz parte de um longo processo de práticas sociais de leitura e escrita. Em vez de um processo mecânico, a alfabetização representa a construção de um conhecimento de natureza conceitual. A criança precisa reconhecer não só o que a escrita representa, mas a forma pela qual ela representa a linguagem.
Se as habilidades de leitura e escrita estão integradas à oralidade, como ela é tratada no RCN? É apresentado um capítulo que fala sobre a linguagem oral e escrita na educação infantil. Existe a proposta de trabalhar a linguagem oral da criança de uma forma mais ampla do que costuma ocorrer em grande número de escolas. A roda de conversa tornou-se uma rotina nas instituições de educação infantil. Como o próprio RCN aponta, essa atividade corre o risco de tornar-se um monólogo, em que as crianças respondem em coro às perguntas da professora. Pautados por dados sobre os prejuízos da privação cultural nas crianças, o RCN mostra a importância de se criar um ambiente que valorize a escrita e a leitura, como facilitadores da alfabetização. Dessa forma, a ênfase é dada à criação de um ambiente alfabetizador.
O que significa isso? Como grande parte das crianças provêm de um ambiente familiar no qual a leitura e a
escrita não são valorizadas, o RCN aponta a necessidade de se criarem situações em que os textos estejam presentes e as crianças participem do processo. Há uma certa ênfase em textos simples, que representem situações concretas, como a escrita de bilhetes, convites, cartazes, receitas culinárias e a leitura de notícias de jornais, embalagens de produtos, etc.
O ato de contar histórias é valorizado, mas diretamente vinculado à leitura do livro. A linguagem oral é trabalhada em situações cotidianas, de forma a estimular a criança a relatar uma situação vivida ou a resolver um problema em conjunto com seus colegas. O uso de atividades pedagógicas após a leitura é colocado como desnecessário, a não ser quando fizer parte de um projeto mais amplo. Porém, a leitura de uma história pelo professor é apresentada mais como
uma atividade que pode favorecer a alfabetização, do que um momento de prazer. Prioriza-se o conhecimento que se pode obter com essas histórias e não a emoção ou o prazer que elas possam despertar. A emoção que aparece é a do outro e não a da criança. Mais adiante, a leitura de histórias é apontada como uma fonte rica de informações sobre diversas formas culturais de lidar com emoções e questões éticas, contribuindo na construção da subjetividade e da sensibilidade das crianças .
Fantasia é uma palavra que não existe neste capítulo do referencial, muito menos criatividade. A história aparece como um instrumento importante para estimular a cognição e o processo de alfabetização. Em nenhum momento é tratada como um elemento importante para a criança projetar emoções ou estimular sua imaginação ou criatividade. Embora o RCN condene a leitura como um processo mecânico, diz que é importante o professor ler a história de forma literal, como se apresenta no texto, para que a criança possa assimilá-la. Essa assimilação não ocorre de forma criativa, mas mecânica e repetitiva. Nesse sentido, é importante ler as histórias tal qual estão escritas, imprimindo ritmo à narrativa e dando à criança a ideia de que ler significa atribuir significado ao texto e compreendê-lo ... As crianças podem saber de cor os textos que serão escritos, como, por exemplo, uma parlenda, uma poesia ou uma letra de música. Nessas atividades, as crianças precisam pensar sobre quantas e quais letras colocar para escrever o texto,usar o conhecimento disponível sobre o sistema de escrita, buscar material escrito que possa ajudar a decidir como grafar etc.
Percebe-se que a criança é estimulada a repetir de forma automática e, se for dada a oportunidade de ela recontar uma história, deve fazê-lo como um papagaio.
E as fadas? Parece que foram banidas do RCN. Os contos de fadas aparecem uma única vez, no final de uma série de sugestões, e entre parênteses. A ênfase é dada à leitura de textos curtos e realistas, como notícias, parlendas, bilhetes, embalagens, e não à literatura infantil. O aspecto lúdico aparece em um plano inferior, em detrimento de uma aquisição imediata de conhecimentos. Não é considerado o papel formativo dos contos de fadas ou de outras narrativas. O aspecto pedagógico dos contos de fadas é descartado por representar um processo mais lento e formativo, e não informativo e imediato.

A HORA DO CONTO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Gostaria de apresentar parte da análise das entrevistas realizadas, vinculadas a meu projeto de mestrado, citado anteriormente. Foram realizadas cinco entrevistas abertas com professoras de educação infantil de escolas municipais de uma cidade do interior paulista. Apesar de a escolha das professoras ter sido aleatória, elas trabalhavam em escolas situadas em regiões distintas da cidade, sendo três da região central e duas da periferia. Quanto à formação, todas fizeram magistério e posteriormente curso superior, possuindo uma boa experiência profissional.
Através dos relatos das professoras, percebe-se que todas as atividades que elas realizam fazem parte de uma programação curricular. O ato de contar histórias também é planejado e vinculado a uma atividade pedagógica.
O plano da gente é muito ... - como é que eu vou falar ? ... - imutável. Você faz: hoje eu vou trabalhar isso com eles. Aí vem uma poesia, um conto, aí eu vou tentar encaixar minha aula nesse conto...
Além de o professor escolher a história a ser contada, planejando sua atividade anteriormente, ela
nunca é contada em um momento que não foi previamente determinado, a pedido da criança. A
realização do desejo - de ouvir uma história - está presente só no professor, e nunca na criança – de ouvila
Como os contos são apresentados às crianças? Nos relatos das entrevistas encontramos a valorização do livro e do texto escrito, em detrimento da linguagem oral.
Olha, você fala de histórias, né? Eu tenho
bastantes livros, sempre que eu vejo um, eu
compro...Ou uma história que encaixa com a
situação, ou história que eu invento ou
história que eles trazem de casa, sabe? A
gente lê história, conta história,...Aí tem
história também que eu leio pra eles. Tem
história que solicita a gente pra leitura.

Outra professora, quando questionada sobre o trabalho com os contos de fadas, responde: “Do
livro?” Ao perguntar se ela alguma vez conta uma história por contar, responde:
Sempre o conto, a poesia, a gente trabalha,
não por contar, a gente já trabalha a literatura
oral e escrita.
Essa professora relata que sempre mostra o livro, o nome do autor e do ilustrador, ou seja, todas as
pessoas envolvidas na produção daquele livro.
Eis o relato de outra professora:
Professora;...Sempre eu tô contando uma ou
outra. Às vezes de livros diferentes. É o
mesmo conto, só que eu uso vários livros,
com diferentes gravuras..
Entrevistadora:
E você sempre lê um livro ou
você conta a história também?
Professora:
Do livro, às vezes eu pego
figuras e vou falando. Eles gostam muito do
livro. Eles gostam que a história saia do
livro.
Entrevistadora:
É difícil você sentar e contar
uma história, sem uma figura ou livro?
Professora:
Sentar e contar assim, não.
Entrevistadora:
Você nunca faz isso?
Professora:
Não, porque eu sempre uso um livro.

Percebe-se uma prioridade em ler o livro, seja para mostrar de onde saem as histórias através das ilustrações seja por ser mais fácil, como relata uma das professoras, que teme perder detalhes na narrativa oral.
A criança precisa que lhe mostrem livros para que se crie nela o interesse pela alfabetização ou o prazer
pela leitura? Digo isso porque até hoje não vi nenhuma criança de três a seis anos que não goste de
manusear um livro, ou mesmo de contar uma história através de suas ilustrações. A pergunta que fica é: por
que elas deixam de gostar dos livros quando estão alfabetizadas?
Como aponta Zilberman (1993), em muitas escolas o processo de alfabetização ainda é feito de forma mecânica e estática, fazendo com que a criança se afaste dos livros, seja por ter sido alfabetizada de maneira inadequada seja por desejar esquecer experiências didáticas desprazerosas. O predomínio das ilustrações.
Uma outra questão que chama a atenção é a valorização das ilustraçõe, e a escolha de um livro é feita, muitas vezes, a partir de desenhos bonitos, coloridos e com pouco texto. O que se apresentou nas entrevistas realizadas foi uma preocupação, por parte dos professores, em escolher textos com muitas ilustrações, sem levar em consideração o conteúdo do texto.
Sabemos que a ilustração faz parte de um código e transmite uma mensagem, tanto quanto o código escrito. É certo também que crianças pequenas gostam de livros mais ilustrados. O problema é que essa ilustração deve complementar o texto e não torná-lo redundante, como muitas vezes ocorre.
Morkazel (2000) ressalta que, “... assim como o escritor, o ilustrador é um autor” que “...interpreta o verbal e o traduz para a visualidade” (p. 9). Para a autora, a ilustração não deve copiar o texto ou adorná-lo, mas recriar a história através das linhas e das cores. “O ilustrador empresta seu olhar à narrativa, usa códigos próprios, sem repetir o que é narrado pela palavra.”
Ler imagens introduz a criança em um processo cultural, favorecendo sua alfabetização. Hoje encontramos diversos livros infantis em que a linguagem é visual. Vivemos também em um mundo em que predominam as imagens e desde pequenas as crianças vêem-se diante de diversos códigos visuais que a introduzem nessa leitura do mundo e de suas imagens. Mas a linguagem é muito mais do que isso. A oralidade e a escrita são componentes fundamentais para a introdução da criança em um mundo cultural e letrado. Além disso, deve ser-lhe proposto o desafio de imaginar o que ela escuta ou vê. A imagem, nesse sentido, é mais regressiva, já vem pronta. A criança não precisa imaginar o que escuta; está tudo alí.
Galeano (1999) cita uma pesquisa feita pela BBC de Londres em que se perguntava às crianças se elas preferiam a televisão ou o rádio. A grande maioria, como já era de se esperar, preferiu a televisão. O que chamou mais a atenção, porém, é que, entre as poucas crianças que escolheram o rádio, houve uma que assim justificou sua preferência: “-Gosto mais do rádio, porque pelo rádio vejo paisagens mais bonitas.”(Galeano,1999, p. 308)
O acúmulo de ilustrações ou sua substituição ao texto ou à oralidade prejudicam a capacidade da criança de imaginar e aguçar sua fantasia. Ao ouvir ou ler um texto, ela pode criar a imagem que quiser, de acordo com seus desejos e fantasias. Se essa fantasia vem pronta, bloqueia-se sua capacidade imaginativa. Bettelheim (1980) e Alves Costa & Bargbanha (1991) abordam essa questão em relação a textos que trazem ilustrações perfeitas e apresentam os personagens tal como eles são. Quanto mais elementos realísticos a história tiver, menor a possibilidade de a criança projetar-se nela. Ela perde a possibilidade de imaginar o personagem ou o lugar narrado. Diminuem também as condições de projetar-se nesse personagem, nessa paisagem, nesse conflito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os contistas contemplam suas mãos ou o fogo,... e o que procura ao contemplar o fogo ou suas mãos é, antes de tudo, ver a imagem mesma de seu discurso. Contar não é só ‘comer’ as palavras, também é queimá-las. Ao final, as palavras do conto se convertem em cinzas; porém, como as palavras do poema, renascem, como Fênix,não quando se relê o conto, senão quando encontra outro narrador (George Jean, Los Senderos de la Imaginación Infantil, los cuentos, los poemas; la realidad).
Conforme foi mostrado no decorrer deste artigo, os contos de fadas sofreram importantes transformações desde suas origens. Nas sociedades agrárias, eles tinham uma importante função de transmitir saberes, valores sociais e, ao mesmo tempo distrair. Apesar de nos encontrarmos distantes das narrativas originais, os contos de fadas mantêm seu poder transformador. Ao mesmo tempo que divertem, os contos de fadas ensinam. Não um saber institucionalizado, mas uma sabedoria de vida: eles ajudam as crianças e os adultos a perceberem o mundo e prestam-se como suportes metafóricos para uma construção simbólica desse mundo. Dessa forma, os contos de fadas podem ser considerados um rico instrumento pedagógico que, além de prazeroso, auxilia no processo de simbolização.
Pelo que pudemos ver, tanto na análise do RCN como nas entrevistas com professores de educação infantil, a função estética e lúdica dos contos de fadas perde-se dentro da instituição escolar. Em sua função alfabetizadora, a escola acaba menosprezando a transmissão oral das histórias, principalmente de histórias que falem de fadas e do fantástico. Parte-se do pressuposto que as crianças provêm de um precário meio cultural e que devem compensar essa falta através de estímulos visuais.
Não podemos desprezar a função da oralidade na formação simbólica do indivíduo Pelo que foi mostrado, o ato de ouvir histórias auxilia o processo de alfabetização. A alfabetização não é mais concebida como um processo mecânico, em que a criança deve aprender a decifrar códigos. A criança deve aprender a ler o mundo, através de todas as suas formas de comunicação.
Ler não se faz só com os olhos e o cérebro, mas através dos ouvidos, do corpo, do olfato, da imaginação e do afeto.
Quanto mais histórias a criança ouvir, mais ela aguçará sua capacidade de imaginar a situação apresentada e desenvolver seu mundo simbólico. Além de sua função emocional, os contos de fadas têm a função pedagógica de ajudar a construir o ser imaginário que “ensina e forma a razão” (Jean, 1990 a, p. 182).
Alguns autores, como Bettelheim (1980) e Alves Costa & Bargbanha (1991), ressaltam que é preferível contar uma história a lê-la. Se um professor não se considerar um bom contador de histórias, isso não quer dizer que ele não possa ler uma história, mas essa leitura deve ser feita com “um envolvimento emocional na estória e na criança, com empatia pelo que a estória pode significar para ela...” (Bettelheim, 1980, p. 185).
De tudo o que foi dito, podemos concluir que mais importante do que o produto do conhecimento é o processo de sua realização, assim como mais importante do que o conto de fadas é o ato de contá-lo e recontá-lo. Bettelheim (1980) mostra-nos que a magia dos contos de fadas encontra-se em seu ato de contar. Quando um pai ou uma mãe começam a contar uma história para seu filho, inicialmente partem de algum conto que lhe foi significativo na infância.
Nesse momento, começa a haver um entrosamento entre pai e filho, que aprendem a reconhecer-se naquela história, sendo que o pai, por sua vez, pode resgatar sua infância. Um professor também pode compartilhar dessa experiência com seus alunos, diferentemente de um pai ou uma mãe. Compartilhar um conto de fadas significa deixá-lo fluir. “Enquanto a
criança frui a fantasia, o adulto pode derivar seu prazer da satisfação da criança; enquanto a criança pode sentir-se exultante porque entende melhor alguma coisa sobre si mesma, o prazer do adulto ao contar a estória pode derivar do fato de a criança experimentar um súbito choque de reconhecimento”
(Bettelhein, 1980, p. 188-9).

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Aberto.
Recebido em 05/09/2001
Revisado em 05/10/2001
Aceito em 10/10/2001